Série
especial aborda os elementos traçados por defesa e acusação em torno da
misteriosa morte de Gaia Molinari
Na tarde do último Natal, há exatos dois meses, um
casal que passeia entre o caminho da Pedra Furada e a Vila de Jericoacoara
avista um corpo de mulher deitado sobre areia rodeada de vegetação rasteira em
cima da duna. De lá para cá, não se sabe quem matou a italiana Gaia Molinari.
Vestida de biquíni, com uma mochila nas costas, cabeça ferida como se a golpes
de pedra. Forte pancada na testa, outra evidente agressão no queixo. Mãos
roxeadas, como se houveram amarrado, e marcas no pescoço que, depois, a perícia
confirma estrangulamento. Quem matou Gaia? Foi encontrada na região do Serrote,
mas ali mesmo assassinada?
Leia mais: Delegada aponta as contradições de Mirian
Conhecido paraíso de tranquilidade, Jericoacoara,
pertencente ao município de Jijoca, é repercutida, mas não por seu cartão
postal.
Gaia estava a passeio e foi encontrada no vazio da
região do Serrote. Crime cercado de mistérios. Nas primeiras horas em que o
corpo é encontrado, um suspeito logo foi apontado. "Edinho é perturbado da
cabeça e já furou um", diz um dono de pousada. "Ele acabou
morrendo", esclarece o próprio 'Edinho'. Do lado de fora da casa de Edson
Veríssimo, ali considerado suspeito, pessoas se aglomeravam. Policiais o pegam
em casa para prestar depoimentos, depois é liberado para casa. Para a polícia,
continua suspeito de envolvimento. Assim como um italiano, um uruguaio e
brasileiros, entre eles Mirian França.
Suspeita principal, a farmacêutica carioca viajou para
Jericoacoara com Gaia. As duas teriam se conhecido em Fortaleza com desejos
parecidos. Passear. Mas Mirian voltou para Fortaleza sem Gaia e esse é apenas
um dos muitos questionamentos levantados pela delegada Patrícia Bezerra, que
preside o inquérito.
Acusada, presa, exposta e se dizendo pressionada
psicologicamente, Mirian França se torna peça importante de um quebra-cabeças.
Sua prisão tem repercussão na medida em que a morte de Gaia causou interesse
público.
Mas há muitas peças soltas, e os desdobramentos podem
ser imprevisíveis. Tentamos, se não montar, encontrar quem as encaixe. Com
exclusividade, Mírian França, Patrícia Bezerra e Gina Moura nos concedem
entrevistas em que ouvem a pergunta: Quem matou Gaia?
"Não menti para a Polícia, não posso pagar pelo
que não fiz"
Você
matou Gaia, ou teve algum envolvimento no crime de morte dela?
Não tive nada a ver com isso, absolutamente, nenhuma
relação com isso. Ajudei a Polícia desde o início. Não vieram atrás de mim.
Eles me ligaram, falaram hora e onde eu deveria me apresentar, às 6h da manhã,
que era o horário que estaria aberto. Eu me apresentei no posto policial (em
Canoa Quebrada, para onde foi depois de Jeri), eles me trouxeram pra Fortaleza
prestar depoimento. Eu sempre falei que estava com dificuldades de me lembrar
de tudo que tinha acontecido. Estava fazendo um esforço grande para poder
ajudar. A medida que fui me lembrando de outras coisas procurei a Polícia,
liguei, informei. Foram me buscar pra fazer reconhecimento de suspeito, mostrar
fotos. Tinham o meu endereço o tempo inteiro.
A
Polícia fala em contradições suas. Porque teriam colocado você da posição de
testemunha para suspeita?
Não entendi ainda como fui envolvida nisso. Desde o
meu primeiro depoimento, quando falei para a delegada que estava com
dificuldade de lembrar de toda a situação ali, mas que estava fazendo um
esforço para lembrar. Contei pra ela o que tinha acontecido, um pouco da nossa
viagem, do que conheci da Gaia. O meu segundo depoimento já foi muito sob
pressão. Mas falei novamente toda a história do primeiro depoimento. As ditas
contradições eu não entendo, pois no terceiro depoimento eu também falei
novamente as mesmas coisas.
Que
pressões são essas a que se refere?
As pessoas estavam pressionando muito. Reiterei o que
tinha dito, mas as pessoas me olhando com desconfiança. Não tinha ninguém ali
do meu lado e já foi um momento bastante tenso porque a Polícia me pegou no dia
28 (de dezembro) pela manhã onde eu estava hospedada, me levaram para Jeri.
Passei o dia inteiro escoltada. Não percebi o que estava acontecendo comigo. No
final da tarde, fui colocada numa delegacia para prestar depoimento, numa sala
isolada de outras pessoas. O celular já tinha sido tirado de mim. Mostrei pra
Polícia como acessava o celular. Nesse dia, antes de eu chegar na delegacia,
uma policial tinha falado que estavam achando que a Gaia tinha morrido no dia
25 e não no dia 24. Fiquei pensando: caramba, ela passou a noite inteira sendo
torturada, agredida? Eu estava sentindo muito medo, desesperada. E não
percebendo por que já estava sendo considerada suspeita.
Como ficou
sabendo da morte de Gaia?
A reserva lá em Jericoacoara estava no meu nome.
Quando a dona da pousada soube, o contato da Gaia era eu, meu número estava lá
nos registros. Eu já estava em Canoa Quebrada. Fiquei chocada, paralisada, não
aceitando aquilo.
Vocês
viajaram juntas. Porque saiu de Jericoacoara sem ela?
Tínhamos que estar no ônibus de 22h30 para voltar pra
Fortaleza. A maior parte do tempo fiquei na pousada. Quando deu a hora, a Gaia
não estava por lá. Procurei por ela, mandei mensagem no 'whatsapp', mas estava
na hora do ônibus sair, eu pensei que ela tinha ficado para uma das festas que
aconteciam no local. Estava me sentindo tão segura naquele local, e acho que a
Gaia também. O fato de ter saído sem ela não foi falta de amizade, de
preocupação, que abandonei a menina pra morrer. Era um dia de festa. Eu achei
que ela estava ali, perdeu a hora do ônibus e ficou para uma festa. Nunca
imaginei que uma coisa dessa iria acontecer.
Você
chegou a imaginar o que pode ter ocorrido?
Depois da notícia, eu não lembrava direito de tudo que
tinha acontecido ali. Comecei a ir lembrando de todas as coisas, desde o dia em
que a gente chegou, com quem a gente conversou, coisas que tinha me falado, o
que comentou de outras pessoas. Procurei resgatar todas essas lembranças para
ajudar o máximo possível. Claro, elaborei várias coisas na minha cabeça, do que
poderia ter acontecido, mas não quero entrar nesse aspecto para não influenciar
na investigação e expor outras pessoas. Eu passei para a Polícia, mas não quero
dizer aqui.
Como
foram os dias na prisão?
Muito difíceis. A cadeia é um ambiente muito hostil.
Passei os primeiros seis dias na sela comum, com as outras presas que chegavam
ali, sem nenhuma condição de higiene. É um local em que eles te jogavam ali,
você só recebia almoço e janta. Nem água a gente tinha. Bebia do chuveiro. Nem
era chuveiro, na verdade, era um cano em que caía água. Antes de ser entregue
na Decap (Delegacia de Capturas) eu passei a noite inteira com os policiais,
sob pressão psicológica. Sendo acusada de coisas que não fiz.
Como o
quê?
Como por exemplo mentir. Fui levada de Jericoacoara
direto para a 'Captura'. Cheguei ali não lembrava direito das coisas que
aconteceram comigo naquela noite. Eu cheguei na sela gritando muito, falando
para as pessoas que estava sendo acusada de assassinato e não lembrava o que
tinha acontecido. Eu conheci muitas meninas e todas elas nessa mesma
solidariedade. Fiquei surpresa com isso. Não pensava que na cadeia era assim, a
hostilidade maior veio mesmo do sistema carcerário.
Acha
que ser mulher, negra, em algum momento isso interferiu diante das acusações?
O racismo hoje em dia é uma coisa que você só sente,
as pessoas não falam abertamente sobre isso. Se fui vítima de racismo, não sei
porque as pessoas não falam nada abertamente. Mas é claro que achei estranho,
dentre várias pessoas que estavam sendo consideradas suspeitas, pessoas
estrangeiras que estavam ali, eu, que sou uma negra, fui exposta desse jeito,
considerada suspeita e nem entendo o porquê. O que eu senti muito, vi e escutei
de verdade, foi um preconceito muito grande contra a mulher. Eu tive que me
justificar várias vezes porque eu sou uma mulher viajando sozinha. Porque não
tenho namorado, não sou casada, ainda não tenho filhos. A minha vida sexual foi
muito exposta, investigada pela Polícia, como se isso tivesse alguma relevância
para o caso. Se está acontecendo um preconceito racial não se fala, mas contra
a mulher foi uma coisa gritante que percebi ali.
O
inquérito não terminou. Sua prisão foi revogada, mas tem medo de ser apontada
culpada?
Medo não, porque já tem muito tempo que estou sendo
investigada e não encontraram e nem vão encontrar nada que me associe com esse
crime. Mas não sei o que pensar em relação a isso. Tem muita coisa errada nessa
situação toda.
Em que sentido?
Tinha muitas pessoas que estavam sendo consideradas
suspeitas e eu fui a única que fui exposta. Desde o primeiro momento que estava
ainda sendo considerada uma testemunha. Não fui eu que procurei a imprensa, que
liberei meu nome. Saiu ali como testemunha de um caso de assassinato, ninguém
sabia o que tinha acontecido, quem fez isso com a Gaia e meu nome foi liberado
como testemunha. Eu achei um absurdo. No segundo momento, que fui considerada
suspeita, fiquei chocada. Eu não fiz isso, eu não tenho nenhuma relação com
isso. Meu nome foi exposto como quem estava mentindo durante o depoimento.
Ninguém expôs ainda quais foram as mentiras que poderiam ter prejudicado o
caso, se tiveram.
O que
vai fazer de agora em diante?
Daqui a pouco o País vai esquecer disso, esses 15
minutos vão passar rapidamente. Mas enquanto não descobrirem o que aconteceu
com a Gaia, sempre vai ter a dúvida, que eu de alguma forma possa ter feito ou
participado do assassinato de uma pessoa.
Eu sempre estudei, minha mãe zelou muito pela minha
educação. Fui aluna de escola pública. Com muito sacrifício consegui passar
para o vestibular numa universidade pública também. Eu me formei na UFRJ
(Universidade Federal do Rio de Janeiro) em Farmácia, fui direto para a
pós-graduação, fiz mestrado, hoje, estou no doutorado. Investigo a imunologia
da doença da leishmaniose para o desenvolvimento de uma vacina preventiva, mas
também para identificar como que se dá a resposta imunologica a doença. É essa
a minha linha de pesquisa atualmente. Nao sei como vai ficar agora com essa
situação toda. Vai existir sempre a dúvida. O preconceito está aí na cabeça,
não só da polícia, mas da sociedade.
*Farmacêutica, acusada pela polícia de envolvimento da
morte de Gaia Molinari
Melquíades Júnior
Repórter